
Havia um tempo em que éramos orientados por fatos e por dados: fatos e dados falavam por si. Diante de um fato, ou mudávamos nossos julgamentos ou rebatíamos e contra-argumentávamos. Era simples!
Hoje em dia, as coisas mudaram: se alguém me apresentar um dado e esse dado não me agradar, eu não aceito. Simples assim. Motivo: o importante não é a verdade dos fatos, mas sim a minha disposição em gostar do que foi apresentado. Se os fatos me agradam, eu aceito; caso contrário, eu não aceito, pois o que importa é o que eu quero ouvir. O que importa é ouvir o que corrobora minhas crenças; é o que eu sinto. Isso se chama “pós-verdade”.
Nossos amigos e colegas logo encontram um modo bem prático de justificar seu desgosto diante dos dados que apresentamos: trata-se de “opinião”, e tudo se resolve. Não é que eu esteja confrontando e mostrando uma falha na argumentação do outro. Não… O que se passa é que eu tenho uma “opinião” diferente. Assim, o outro não precisa refazer seu raciocínio, e tudo se resolve.
Já repararam que toda postagem nas redes sociais hoje em dia é acompanhada por um “Qual sua opinião?” Pois é. Opinião resolve tudo. Houve um conflito no diálogo? A “opinião” do colega é diferente… Isso evita a possível constatação de que eu tenha errado na minha abordagem do assunto: se eu não gostar do que você disse, basta jogar na “opinião” e está tudo certo. Esses dias, diante de uma falha óbvia de interpretação de texto, tive de ouvir pessoas dizerem que “Na nossa interpretação, nós entendemos assim…” Estava bem claro que aquelas pessoas haviam se aproximado do texto com uma agenda pronta e foram ao texto (um vídeo) confirmar aquilo que já tinham em mente. A conclusão já fora levada pronta.
De vez em quando, preciso me preparar psicologicamente e me antecipar às reações de meus interlocutores: (I) não vou apresentar opiniões; (II) vou colocar fatos; (III) não vou dizer o que te agrada, necessariamente. Isso me ajuda a preparar meus ouvintes para possíveis fatos desagradáveis.
Estamos diante de uma vergonhosa crise humanitária em nosso país: o abandono e a morte de vários Yanomamis em Roraima. Para muita gente, trata-se de uma novidade. O problema é que essa novidade é antiga. Fato! Aí começa o problema, pois para muitos de nós o assunto está atrelado à já crônica querela política que se instaurou a partir da eleição de J*ir Bol*onar* nas penúltimas eleições. A questão não é simplesmente denunciar os horrores sofridos pelos indígenas e exigir uma solução. Não: o objetivo é vociferar contra o ex-presidente da república. Resultado: quando pontuei que o problema é bem antigo, sendo uma realidade, inclusive nos governos Lula-Dilma, fui atacado: “É gado mesmo!”; “Bol*onar* fez lavagem cerebral em você…”. Eu respondi: “Amigo, em algum momento eu falei em B??? Estou defendendo o ex-presidente?” Ora, eu simplesmente apontei o FATO de que é uma tristeza que essa situação se arraste por tanto tempo sem solução. Só isso, mas já está bem claro que meus interlocutores não gostaram do que eu disse, filtraram minhas palavras e me acusaram daquilo que eu não disse: na pós-verdade, você acusa o outro não do que ele disse, mas daquilo que você o enxergou dizer. Afinal, quem ele pensa que é para te desagradar? O dono da verdade???
Os fatos continuam falando por si, e aí está o problema: as pessoas chegam sozinhas a conclusões que as desagradam. Resultado: o ataque a quem apresentou os dados e a tentativa de configuração de uma verdade.
Se prepare!
Ulisses Araújo Silva é bacharel e licenciado em Letras (Português/Inglês) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e bacharel em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde também se especializou em Língua Inglesa e Linguística Aplicada. Atua como professor de Inglês na Rede Municipal de Ensino da Cidade do Rio de Janeiro.
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