
O dia-a-dia em uma escola não é nada simples. Muitas pessoas pensam, dentro do senso comum, que ministrar uma aula é fácil: o professor entra na sala, os alunos se sentam, ouvem o que vai ser dito e copiam a matéria. Quanta inocência…
Em um país com dimensões continentais como o Brasil e com tantas mazelas sócio-políticas, o ensino não é nada fácil. Além de todos as questões que enfrentamos, temos de lidar com questões bem individuais, como as dificuldades de aprendizagem – e é aí que pais e docentes precisam se entender muito bem.
De vez em quando, para não dizer todo dia, nós professores percebemos alguns comportamentos “interessantes” em sala: a criança de sete, oito anos que não se concentra, o menininho de seis que se recusa a fazer trabalhos com tesoura, a menina que simplesmente não para sentada, o coleguinha que parece viver em um mundo só seu, a criança nervosa, a menina que está sempre olhando em volta e para o alto, o menino que acaba de ouvir uma instrução e pergunta: “É pra fazer o quê?”
O que será? - você me pergunta. Não sei! Preciso observar essa criança. Preciso utilizar os meus recursos. Entretanto, pode ser que chegue a hora em que a família, na pessoa do responsável imediato, deve ser comunicada: “Ele é agitado em casa?”; “Como é o relacionamento com os irmãos?” Entendam: nossa experiência de anos, décadas de sala de aula geralmente não nos trai. á fazemos perguntas para ajudar a família a “soltar” algo – ou mesmo a enxergar algo que está diante dos olhos de todo o mundo. Antes de aprofundar a questão, porém, precisamos conhecer duas realidades relacionadas: a dificuldade de aprendizagem (DA) e o transtorno de aprendizagem e/ou comportamento (TAC). DA e TAC até o final deste texto, OK?
Uma DA, como o próprio nome diz, é simplesmente uma dificuldade: falta de concentração, dificuldade na hora de escrever, não saber fazer as letras, nervosismo, um problema físico já bem conhecido. Existem outras. A princípio, uma dificuldade é “só isso”: uma dificuldade. O que fazer? Se for algo novo, observar. Observar e, se preciso for, dar um toque no responsável. Às vezes, descobrimos que a criança está passando por um evento mais ou menos adverso: separação dos pais é um bom exemplo. O nascimento da irmãzinha é outro: a criança nota que está perdendo o palco… Tive uma aluna cujos pais haviam se separado recentemente e – não sei por quê – ela ficava cada semana na casa de um. Preciso dizer que essa criança tinha dificuldades o tempo todo? Existia um cenário claro em sala: ela contra todos e todos contra ela. Ela não tinha estabilidade dentro de casa. Qual era a casa dela? A do pai ou a da mãe?
Uma DA costuma se resolver a partir do momento em que seus fatores de motivação se desfaçam, ou mesmo quando a criança aprende a lidar com a situação que está atravessando. A menina que ganhou uma irmãzinha logo começa a ajudar no cuidado com o neném e a necessidade de atenção é reconfigurada – e por aí vai.
Outra DA: o mimo. Criança mimada e que tem as vontades feitas o tempo todo, vai se chocar com a coletividade presente na escola. Ela simplesmente vai estranhar quando receber um não ou quando precisar se adaptar aos colegas, pois em casa existe uma regra: querer é poder; na adolescência, isso pode progredir para “vontade é direito”. Só que não...
Por outro lado, pode ser que a DA tenha uma motivação mais específica e estrutural: se não há um evento afetivo, físico ou familiar que nos ajude a explicar a dificuldade, é hora de ligar a luz amarela. O fator tempo é nosso aliado: observamos por semanas, meses, e isso porque um TAC não é eventual. O transtorno tem a ver com a dinâmica cerebral da pessoa: está na configuração!
Um transtorno muitíssimo comentado hoje em dia – e que de fato existe – é o Transtorno de Déficit de Atenção e/ou Hiperatividade, o TDAH. Ele pode se caracterizar por uma dificuldade em prestar atenção ou por um comportamento excessivamente agitado. Pode também ser uma mistura! Quando nós observamos, por mais de seis meses, que a criança apresenta um desses quadros, é hora de pedir ajuda: nós pedimos ajuda aos pais e os pais a um profissional de saúde, que via de regra é o pediatra.
E por que esperar meses até pedir ajuda ao profissional de saúde? Simples: a criança pode estar a passar por algum evento adverso que caracterize uma DA! Em menos de seis meses fica um tanto difícil fazer o diagnóstico.
Nessa hora, algumas pessoas perguntam: quais seriam os sinais de preocupação na mente de um professor? Temos alguns: falta de foco nas tarefas, dificuldade na organização das atividades, quebra de atenção por qualquer barulho, agitação constante, fala demasiada, impulsividade – e outros. Existem questionários que nos ajudam no mapeamento de um possível TDAH e por isso o suporte médico-psicológico é fundamental. O diagnóstico não é feito em cinco minutos, então não vá ao Google se consultar. Fica a dica!
Já tendo ficado claro que uma DA tem uma motivação eventual e/ou ambiental, vem a pergunta: o que causa um transtorno? As pesquisas indicam que pode haver motivações genéticas, hereditárias ou pré-natais. Não se sabe ao certo. O que sabemos é que a identificação de um TAC ajuda – e muito – no manejo dos sintomas e na qualidade de vida da pessoa que apresenta o transtorno e das pessoas que convivem com ela. Nossa postura muda quando ficamos sabendo que o que está acontecendo não é simplesmente “má vontade” ou “rebeldia” e consequentemente passamos a fazer adaptações no ambiente. Por exemplo: se eu sei que uma criança apresenta TDAH, não vou contar com a consecução de uma tarefa de maneira integralmente autônoma. Preciso ficar por perto nos primeiros dois ou cinco minutos, até que a criança comece a focar. Se meu filho apresenta sinais de hiperatividade, vou precisar ter paciência e ajudá-lo a se ajudar! Se eu descubro que a agitação é causada pelo uso excessivo do telefone celular, vou ter de aprender a reduzir a frequência dos joguinhos – e isso não será fácil! É fato que a qualidade de vida da criança muda a partir do momento em que sabemos o que se passa de fato – se é uma DA apenas ou um TAC, de fato.
Se a professora do seu filho sinalizar alguma preocupação e aconselhar uma consulta médica, não leve a mal e nem se desespere: ela apenas notou que a criança precisa de atenção e ajuda.
Um outro comportamento que de vez em quando se faz notar nas escolas é o da desobediência excessiva. Repito: pode se tratar de uma DA, mas pode também ser um TAC. O Transtorno Opositivo-Desafiador (TOD) tem algumas características: birras que vão para além dos quatro, cinco anos de idade, chegando à adolescência, problemas de sono, egoísmo atípico, problemas de socialização (os colegas reclamam muito da criança), recusas constantes. Fazer um pedido à criança é uma tarefa árdua, pois ela vai causar problemas. Não se deve achar que uma criança tem o TOD simplesmente por ser desobediente, mas uma dica é valiosa: ouça os professores da criança!
Especialistas apontam que um TOD pode se desdobrar em Transtorno/Desvio de Conduta (TC), trazendo grandes danos vida adulta adentro. Daí a importância do diagnóstico, para que possamos agir e promover uma vida melhor para a criança ou adolescente e prevenir incidentes futuros.
Sobretudo agora, no pós-pandemia, um caso tem chamado a nossa atenção: dificuldades motoras. Os professores de Educação Física que o digam… Tem sido difícil para muitas crianças fazer movimentos simples. Nós, professores de sala, também temos visto, aqui e ali, crianças que se recusam a fazer certas tarefas – o motivo não é difícil de se apontar: passaram o tempo todo em que estavam fora da escola focados no telefone celular. Resultado: mal conseguem pegar um lápis. Usar uma tesoura é tarefa quase impossível. Daí a birra, daí a má vontade, pois a criança se recusa a fazer algo para o qual não se percebe apta. Como se trata de uma DA, via de regra, resolvemos isso do nosso jeito, com mais atividades em sala e com uma ajuda fundamental da família: menos celular, menos TV e mais brincadeiras, mais movimento, mais pracinha, mais parquinho, mais amigos, mais priminhos por perto. É fato que a tecnologia tem trazido certos problemas a nós todos, mas quem mais sofre são as crianças em idade escolar.
Aproveito para fazer um gancho: crianças estão fazendo uso de tecnologias – telefone celular, sobretudo – muito cedo. Isso tem levado a muitos problemas de concentração, pois o cérebro da criança é bombardeado excessivamente com substâncias cerebrais (as “inas”), o que leva a um constante estado de agitação. Na tela do celular, tudo é automático e não se requerem certos esforços por parte do cérebro, o que acaba por atrapalhar o desenvolvimento de certas funções muito importantes para toda a vida. A tecnologia tem seus prós e contras, e os contras precisam ser bastante considerados durante os primeiros anos de vida. Colocar um aparelho de celular na mão de uma criança de menos de sete anos não é uma boa ideia...
Essas e outras dificuldades/transtornos por vezes passam despercebidas em casa, pois o lar é o habitat natural da criança. Às vezes, se trata de puro mimo, e é aí mesmo que a família não nota nada de diferente. Quem nota que há algo diferente é, via de regra, a professora. Por vezes, alguém da família já notou algo, mas não tem as palavras certas para descrever o que está ocorrendo. Por isso tenho um pedido a fazer: ouça! No final, podemos acabar vendo que a DA é apenas uma dificuldade e vai passar. Haja o que houver, saiba que os professores querem o melhor para as crianças – mesmo que você ache que é exagero ou implicância.
E se a DA for o sintoma de um transtorno? Simples: vamos ajudar essa criança a aprender a lidar com a questão – e vamos aprender com ela! Quanto mais precoce um diagnóstico, maiores serão as chances de sucesso pessoal, profissional, social, familiar dessa criança na vida adulta.
Não tratamos de tudo aqui, mas tratamos de algo.
Um forte abraço,
Tio Ulisses.
Ulisses Araujo Silva é bacharel e licenciado em Letras (Português/Inglês) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, bacharel em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e também se especializou em Língua Inglesa/Linguística Aplicada pela mesma instituição.
Atualmente leciona Língua Inglesa para crianças do primeiro ao quinto ano do Ensino Fundamental na Rede Municipal de Educação da Cidade do Rio de Janeiro.
Quer saber mais?
O cérebro no mundo digital: os desafios da leitura na nossa era. Maryanne Wolf, Editora Contexto, 2019.
Crianças desafiadoras: aprenda como identificar, tratar e contribuir de maneira positiva com crianças que têm Transtorno Opositivo-Desafiador. Luciana Brites e Dr. Clay Brites, Editora Gente, 2019.
Mentes inquietas. TDAH: desatenção, hiperatividade e impulsividade. Ana Beatriz Barbosa Silva, Globo, 2014.
TDAH nas escolas: estratégias de avaliação e intervenção. George J. DuPaul e Gary Stoner, M. Books, 2007.
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